"Mas só muito mais tarde, como um estranho flash-back premonitório, no meio duma noite de possessões incompreensíveis, procurando sem achar uma peça de Charlie Parker pela casa repleta de feitiços ineficientes, recomporia passo a passo aquela véspera de São João em que tinha sido permitido tê-lo inteiramente entre um blues amargo e um poema de vanguarda. Ou um doce blues iluminado e um soneto antigo. De qualquer forma, poderia tê-lo amado muito. E amar muito, quando é permitido, deveria modificar uma vida - reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e no território conquistado hastear uma bandeira. Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças. Mesmo que depois venha o tempo do sai, não domei."
Do livro Os dragões não conhecem o paraíso, de Caio Fernando Abreu.

SOBRE O EDITOR
Frederico Lima é um apaixonado por Literatura e Psicanálise, com formações em ambas as áreas. Responsável pela pesquisa, seleção e tradução do acervo de citações do blog. Envie um e-mail para ele clicando aqui...